Lei
decorrente de sanção tácita. Ausência
de promulgação pelo Chefe do Poder Executivo e pelo Presidente do
Legislativo no prazo constitucional. Necessidade e obrigatoriedade da
promulgação para proclamar a existência da lei e para a
produção dos seus efeitos. Interpretação do art. 66, § 7º, da
Constituição da República.
Estamos diante de
uma situação na
qual o Chefe
do Poder Executivo deixa transcorrer o prazo legal de
15 dias úteis sem assinar o projeto, configurando a chamada sanção tácita,
proveniente do silêncio. Nesse
caso, a referida autoridade deveria promulgar a lei em até 48 horas, o
que não se verificou. Da mesma forma, não houve a proclamação solene da
existência da lei pelo Presidente da
Casa Legislativa, o que impediu a
produção dos efeitos jurídicos do ato normativo.
Está-se
diante de lei ineficaz, ou seja, que não chegou a produzir efeitos por falta de
um requisito indispensável: a promulgação publicada.
O cerne da questão que aqui
pretendemos desenvolver é o seguinte:
é lícita a promulgação da lei
pelo Presidente da
corporação legislativa, mesmo após
decorrido extenso lapso temporal desde a
sanção tácita? Ou seria mais razoável a apresentação de outro projeto de
lei dispondo sobre o mesmo objeto, uma vez que o ato legislativo não adquiriu
existência jurídica?
Visando facilitar
a compreensão da matéria,
julgamos conveniente dividir o assunto em
tópicos para melhor
explicar o instituto da
sanção e as fases
posteriores integrativas da lei (promulgação e publicação), bem como
para indicar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.
I
- Sanção
A
sanção é ato político de competência exclusiva dos Chefes do Poder Executivo
(Presidente, Governador e Prefeito) e consiste na sua adesão ou aquiescência ao
projeto aprovado pelo Legislativo. Trata-se de uma prerrogativa assegurada a esses
agentes políticos pelo
ordenamento constitucional, a
qual não comporta delegação. É por
intermédio dela que o projeto se transforma em lei.
No
Direito Constitucional positivo brasileiro, a sanção pode ser expressa ou
tácita.
A primeira
se verifica quando
o Chefe do Poder
Executivo, observando o prazo
legal, assina o projeto
e, assim, manifesta
seu assentimento. A segunda
ocorre quando a mencionada autoridade
deixa esgotar-se o prazo
sem assinar a proposição de lei, hipótese em que o seu silêncio configura
a sanção tácita.
É
interessante observar que não é apenas a sanção expressa que tem o condão de
transformar o projeto em lei. O silêncio do Executivo também o tem. Se o
Presidente da República, o
Governador do Estado ou o Prefeito Municipal
não veta determinado projeto de
lei no prazo de 15 dias úteis, isso significa que o projeto foi sancionado e se
converteu em norma jurídica. Está apenas dependendo de ato posterior para ter
eficácia, a saber, a promulgação publicada. Nesse ponto, trazemos à colação o ensinamento do grande Mestre Manoel
Gonçalves Ferreira Filho sobre a sanção tácita:
“É tácita,
quando o Presidente
deixa escoar esse prazo
sem manifestação de discordância
(art. 66, § 3º). A ausência de sanção no prazo constitucional de modo algum faz
caducar o projeto, mas o torna lei, perfeita e acabada, porque é forma silente
de sanção” (In: Curso de Direito Constitucional. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 169. Grifo
nosso.) Posicionamento semelhante encontramos na doutrina do eminente jurista
Pontes de Miranda, que, ao examinar o assunto, assim se manifesta:
“A
sanção, ou é escrita, ou se exprime pelo silêncio comunicativo de vontade. Se
deixou de vetar, sancionou.
Se não promulga a lei, pois que
lei já é, seguem-se a promulgação e a publicação,
que é ato posterior à existência da lei” (In: Comentários à Constituição de
1967, alterada pela Emenda
Constitucional nº 1/69. 2ª
ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 3, 1970, p. 191. Grifo nosso.)
II
– Promulgação
A promulgação
também é ato de
natureza política, cujo objetivo
é atestar solenemente a existência da
lei para a produção
de seus efeitos.
É um requisito indispensável à
eficácia do ato normativo. Trata-se de uma operação integrativa da lei que
atesta a sua executoriedade.
Normalmente,
a promulgação é ato de competência do Chefe do Poder Executivo. Entretanto, no
caso de sanção tácita ou de rejeição de veto pela Casa Legislativa, se a lei
não é promulgada por ele dentro do prazo legal, cabe ao Presidente do
Legislativo fazê-lo.
A
promulgação pressupõe uma lei já existente, um trabalho legislativo cujo ciclo
de formação já se
completou na Casa Parlamentar.
É incorreto falar
em promulgação de projeto, pois a
redação do § 7º do art. 66 da
Constituição da República não dá margem a outra interpretação. O texto
refere-se explicitamente à promulgação da lei, o que supõe a existência
anterior da norma jurídica.
Se
a sanção é uma faculdade
inerente aos Chefes do
Poder Executivo, que podem concordar ou não com o projeto
aprovado pelo Legislativo, a promulgação reveste-se de
caráter obrigatório. Essa obrigatoriedade pode ser
explicada sem maiores dificuldades.
A
partir do momento em que ocorre a sanção tácita, há a transformação do projeto
em norma jurídica. Esta lei resultou não só de uma manifestação soberana e
legítima do Parlamento, mas também
da declaração de vontade do
Chefe do Poder Executivo em decorrência do silêncio.
Ora, se já é lei, não há alternativa senão o dever de promulgá-la. Se a
autoridade do Executivo não promulgou a lei dentro do prazo constitucional, o
Poder Legislativo passou a assumir a responsabilidade pela proclamação solene
de sua existência. Assim, parece-nos que a promulgação é mais um dever que uma
faculdade, pois a autoridade competente para tanto
não pode ignorar um
processo perfeito e acabado que resultou
na confecção da norma jurídica.
III
- Publicação
A
publicação é o ato pelo qual se dá conhecimento do conteúdo da lei aos seus
destinatários, tornando-a obrigatória. Enquanto a lei não for publicada no
diário oficial, ela não tem validade nem pode ser exigido seu cumprimento. A
partir da data em que a lei é publicada no órgão competente,
ocorre o início de sua vigência, estando ela apta a produzir
efeitos. Assim, uma
vez divulgado o seu conteúdo na
forma legal, ninguém poderá deixar de cumpri-la, alegando
o seu desconhecimento. A matéria relativa a publicação de lei enquadra-se no
campo da legislação civil. O art. 1º da
Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro determina:
“Art. 1º
- Salvo disposição contrária,
a lei começa
a vigorar em
todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.
Já o
art. 3º do mencionado diploma legal
estabelece que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a
conhece”.
Verifica-se, portanto,
que a publicação da lei é
requisito indispensável à sua
validade e eficácia, bem como à obrigatoriedade de observância de seus
preceitos.
A
divulgação oficial do conteúdo do ato legislativo deve ser feita pelo mesmo
órgão responsável por sua promulgação.
Alguns
autores, como o constitucionalista
José Afonso da Silva,
veem na publicação simples fato
ou mera operação material, além de considerá-la como dever do poder público e
elemento integrante da promulgação. Segundo o mencionado jurista
“A publicação
constitui tão-só um
instrumento pelo qual se transmite a promulgação (que concebemos como
comunicação da feitura da lei e do seu conteúdo) aos destinatários da lei. É
meio pelo qual se notifica a estes o ato promulgatório. Por isso é que dissemos
que a publicação integra a promulgação,
como um de seus elementos
instrumentais ... Há,
portanto, obrigação de
publicar decorrente da obrigação
de promulgar. A autoridade que emitir o ato de promulgação tem que
providenciar imediata publicação” (In: “Princípios do processo de formação das
leis no Direito Constitucional”. São Paulo, 1964, p. 226-229).
IV
- Posição do Supremo Tribunal Federal sobre a promulgação de lei
O
Supremo Tribunal Federal, ao examinar o Recurso Extraordinário nº 62.683, que teve como relator o Ministro
Osvaldo Trigueiro, firmou a seguinte jurisprudência:
“Não
cabe ao Poder Judiciário interferir no processo legislativo a fim de promulgar
texto em lei”.
A
decisão em epígrafe afastou a possibilidade de o juiz determinar ao órgão ou à
autoridade competente (seja do
Executivo, seja do Legislativo)
que proceda à promulgação da lei,
pois trata-se de assunto estranho ao Poder Judiciário. Assim, não é lícita a
interferência do órgão jurisdicional para exigir do Presidente da República ou
do Presidente do Senado Federal, se for o caso, a promulgação do ato normativo.
O
referido ministro, ao justificar seu voto, esclarece:
“O
Poder Judiciário não pode intervir no processo de elaboração das leis.
Sem dúvida, incumbe-lhe dizer se uma lei é constitucionalmente válida ou
não. Mas não lhe é permitido ordenar ao Poder Legislativo que promulgue determinada
emenda, nem ordenar ao Poder Executivo que sancione determinado projeto”. Ao
nosso ver, a
posição do Pretório Excelso é compatível com o
princípio da independência e harmonia dos
Poderes, deixando a
tarefa de promulgar a norma ao órgão
detentor de competência constitucional para a sua efetivação.
V
- Conclusão
Pelo
que foi exposto ao longo deste trabalho, a nossa opinião é que projeto de lei aprovado
pelo Poder Legislativo e sancionado tacitamente pelo Chefe do Poder Executivo foi
transformado em lei, e esta, consequentemente, deve ser promulgada pelo
Presidente da corporação
legislativa. O lapso
temporal decorrido não o
impede de atestar a existência da norma jurídica, visto que
subsiste a obrigatoriedade de sua promulgação.
Entretanto,
deve-se levar em conta que o acentuado decurso de prazo pode servir de pretexto
para a não promulgação da lei, na hipótese de o texto revelar-se ultrapassado ou
incompatível com a nova realidade . O princípio da razoabilidade pode afastar o
dever de proclamar formalmente a
existência da norma jurídica.
Tal princípio exige que os procedimentos do poder público sejam
pautados pelo bom senso, pela moderação e pela adequação entre os meios a serem
utilizados e a finalidade a ser alcançada.
Finalmente,
assinale-se que é irrelevante o fato de a
composição do Legislativo que vai
promulgar a lei ser diferente daquela que a aprovou, pois já houve a manifestação
soberana e regular do parlamento
sobre a matéria. Seus membros são
transitórios; no entanto, a
instituição é permanente, de tal modo que subsiste o poder-dever de promulgar a
lei.
Junho/2003
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Antônio
José Calhau de Resende